"A arte existe para que a realidade não nos destrua." Friedrich Nietzsche



quarta-feira, 5 de outubro de 2011

Poética da saudade



Murmúrios de aves sonâmbulas completavam a paisagem em decadentes mantras, e se iam. Era assim. Um carrossel com cavalos inertes, presos no tempo, como que uma espera. Balanços, mesas, brinquedos de cordas, o soldadinho de chumbo, tudo era silêncio. Passos empalidecidos pela proximidade da noite, compassados, ouviam-se, distantes.   Pequenos carvalhos amiudavam-se à flor dos olhos, como que um punhado de sonhos dispersos na claridade do dia. Mas a atmosfera me segredava algo bom. Querubins amarfinados velavam discretos um pequeno jardim de inverno, esquecido, repleto de presenças pétreas. A dança das horas sucumbia nervosa ao cinza desbotado da pálida neve, que fitava silente a simetria dos meus olhos, aqueles olhos...
Nuvens desbotadas riscavam na paisagem estranho desenho, como que pedaços de lugar nenhum contornando o vazio.  Tudo era vertigem. Tudo era cansaço. Neblinas curvavam-se como pálpebras cansadas ao horizonte dos mares. Ao longe, estranha brisa se desfazia em sândalos, como névoas invernais. Pétalas quebravam-se débeis, como cerâmicos rouxinóis, em cânticos. E a curva dos teus olhos delineava na paisagem ecos a muito perdidos (nos sonhos). E refletia presenças, e abria espaço.  


quinta-feira, 29 de setembro de 2011

Dos acordes do mar



Ondas brumas
suspiros celestes n’alma
dos mares
carícias disformes
submersas quase
silentes
almas flutuantes se
beijam e balançam
em ritmos distantes
melodias espumam
na areia
e esfumam-se
em compassados mantras
turvos místicos
quebrados
se desfazem pálidos
como ondas.

quarta-feira, 21 de setembro de 2011

Lírica a uma alma perfumada

  

                                                                                                   Para F. Ramos

Teu riso é uma canção em sol maior.
Alegre despertar de flores mudas
em dias de cinza.
Translúcido e compassado
teu riso é decorado de aromas e bordados.
Jacintos e acácias
pequenos
copos-de-leite cintilam à margem
dos dias
a espera humilde dos perfumes
sorrisos.

Teu olhar é um palácio de candura e mansidão
tem estrelas e cintila
assim como a canção.
Ondas e mar se despetalam brandos
em gestos simples,
e se curvam gratos
na breve curva do teu olhar
cuja textura e maciez
acariciam-lhes as margens solitárias
de pupila em pupila estrelas se desfazem
como num concerto de pálpebras
desertas
desertas e mudas.
É que teu olhar turva a maestria das estrelas.

Tua presença é como brisa de outono
branda, silente, morna
tal qual um querubim
quando respira
silente em jardins distantes
seus arcos são resquícios pálidos
de estranha civilização
de pássaros
e suas mãos, como nuvens e asas
todas pandas.

segunda-feira, 8 de agosto de 2011

A menina dos acordes perfumados


                                                                                   Para Matilde.
 Pequenas gotículas musicais
ecoam pueris
entre dedos sutis
num breve valsar de pétalas.

Acordes
despontam angélicos,
serenos, pálidos
como os semblantes da flor
em dias de transparentes
pétalas.

Colinas acordadas
despontam
e desvendam celestes
pétala por pétala
mistérios
em gestos musicais.

Compassos de nuvens
de asas e liras
violam indecisos
a fórmula da flor.

sexta-feira, 8 de julho de 2011

Ontologia de uma flor

                                       
                                                                 Para Margherita Galbiati

Há um silêncio no silêncio que
respira, e some.
No respiro transborda e
fecha-se, como pálpebras
como um discurso de pétalas
como pétalas fechadas
em (d)cores.

Configura-se em
contornos invisíveis
esplêndidos
desenhos pardos
místicos.

Santificar-se
é o desejo da flor.

Sublime é o suspiro
de suas pálpebras
pétalas
silentes pétalas
sábias.

quarta-feira, 22 de junho de 2011

Sacro silêncio


  “Na insuficiência metafórica, a eminência poética traduz teus silêncios”.

À margem de uma espera
anêmonas acácias
lírios e carvalhos
flutuam em júbilo por sobre
nuvens, pássaros disformes
no azul invisível
de uma estrela que pousa
estala e irrompe
na alma de uma lágrima.

Perfumes místicos traduzem
o orvalho sagrado que apascenta
e descansa
na seda dos olhos
um cântico de rosas gerânios
matizes de cores mudas
enfeitam a paisagem celeste
em sublimes bordados
onde dedos traduzem estrelas

Ecos silentes trasladam
em êxtase
um discurso de faces.
Sublimadas córneas
fotografam silêncios
para fixar o instante.

Um (re)encontro de pétalas
anuncia a estação das cores
flores se rejubilam em pássaros
gritinhos afobados desforram pueris
os semblantes do céu
que sorriem
como crianças em dias de brinquedos.

Perfumes e magnólias contemplam
estarrecidos
as litanias
do silêncio.

sábado, 11 de junho de 2011

Devaneios lícitos



Em Campos Elíseos desponta
e paira
no fecho da pupila
perfumados fios
d’água.

Em tempos humanos
crisântemos traduziriam
suas estrelas
e pássaros fotógrafos guardariam
os semblantes
de suas almas.
Na ausência do ser,
alma é sustentáculo.

(Às vezes chove, às vezes minto)
sou toda ecos.

Sublime é a face do silêncio.
Em contemplação à própria face,
persigna-se.
A alma.

terça-feira, 24 de maio de 2011

Dos discursos pétreos



Breve dormir egípcio
por séculos parados
cristalino é o sigilo do espelho
de um vulto em mármore

Fantasmas calcinados contemplam,
inertes, a silente sabedoria pétrea
de uma face a muito distante
perdida
transfigurada à golpes
de tempo.
Só o tempo contorna uma imagem bela.

Pósteros dirão que imagem não comunica.
Procede.

A vida é uma bailarina.
Até quem arde em gélida moldura
transpira no ir e vir
das belezas frias

E quando o compasso dos dias
em trejeitos solenes
contemplar o semblante das esculturas
com fios de tempo
a Gioconda transbordará em risos
cristalinos
como é o sigilo do espelho
de um vulto em mármore
por séculos parados
em breve dormir egípcio.

Sábios dirão que a imagem dói.
Dói a imagem.

sábado, 21 de maio de 2011

Na noite da alma uma estrela descansa

                                                                                        
                                                                                              Para F. S.
Flor é sumo-
mistério
rebentá-la só contemplam pássaros
quando distantes.
Quando celestes, tremeluzem pequenas
serenas carícias celestes
quando flor.
Quando Helenas, cheiram a orvalhos
acordados, bêbados.
Quando mantras
recordam em eco
o coro das nuvens
de arpas e liras
seus longes
suas margens.
Quando estrela, não irradia
silencia
no ser e dorme
na alma
da última pétala
vazia.
Toda flor é tímida.

sexta-feira, 11 de março de 2011

Os interstícios do ser


                     “Serei um habitante do mundo, apesar do mundo”. G. Bachelard

Não seria os teus olhos um interstício do ser? Sim. Os meus não. Os meus têm o dom de metamorfosear o invisível. E abrir espaço. Quando metamorfoseiam no céu, nuvem por nuvem decresce disforme.  As nuvens são disformes. O céu também.
No infinito de olhar os olhos habitam. Quando estrelas crepitam de luar, nuvens e pálpebras se quebram invisíveis. Na medida dos olhos teus, esta cosmologia seria apenas um olhar poético (cruci)fixo em um cobertor ralo de estrelas surradas, que protege debilmente o berço que sonha. Os meus não. Os meus fotografam memórias ocultas em manhãs de cinza.
Quando na Grécia, em um jardim qualquer, Nix envolta dos densos mantos espelhados dos orvalhos e de querubins malfeitores, anuncia em gestos pétreos as sentenças clarividentes da morte, meus olhos integram-se aos ecos ruidosos do universo em um coro ditirâmbico, enquanto o belo e o trágico metamorfoseiam-se confundidos.
Em teus olhos não existem elementos trágicos, nos quais comportem a sublimidade do belo. A não ser um retrato mal pintado da mulher de Ló, cuja vida doou por um último olhar. Mas o verdadeiro anelo da mulher de Ló não era a magia que se encontra em reflexos invisíveis de pálpebras abertas. Assim como Nix, anelava o belo imutável da petricidade.
Eis a profundidade dos olhos teus! Os meus não.  O sintoma de olhar me cega, e adoeço de invisível.
Os teus configuram-se de pupila, metamorfoseando almas.

terça-feira, 25 de janeiro de 2011

Dos cansaços


Nesses dias em que se morre a golpes de porquês, ou quase se morre. De caminhadas cinzas que nos oferecem rostos inexpressivos e manchados de tempo, escondidos sob verdades tímidas e espessos casacos surrados e de cores indecisas, encarquilhados por vapores de tempo frio. Ou quem sabe é fim de tarde.
São nesses climas que um gim barato existe para que o real não nos destrua, se é que ele existe de fato. (Sempre achei que o real só existisse na ficção, e a ficção apenas nela mesma). As calçadas de uma avenida qualquer estão repletas de garrafas quebradas e copos vazios, num percurso discreto que dá ao pé da escada de uma talvez boate, também qualquer. Entrementes, não me senti alheio de todo a elas. Deveriam ter histórias para contar que seriam de fato interessantes se houvesse um banco esquecido de outono em um parque desabitado ou quem sabe em um campo de baseball, acompanhado de um bom chocolate quente e um lucky strike. Mas estávamos no inverno, e os bancos de inverno só servem para abrigar neve; quiçá folhas molhadas e secas. Talvez não seja tão triste vagar solitário quando se tem uma imaginação a mais e uma boa carta na manga.
A noite caiu como um trovão sobre a cidade que mais parecia um cemitério de deuses olímpicos.  Ar polido e fúnebre.  Ao largo, um olival era de um cinza esverdeado em meio a arquitetura bucólica formada por respingos cristalizados e tremeluzentes que se desprendiam de nuvens pesadas e negras. Cenário mais que convidativo. Recostei-me a um velho pinheiro sem perspectiva.  Pálpebras dormentes...
- Um gato preto aproximou-se de mim com olhos nunca vistos iguais. Pareciam astros luminosos jamais descobertos.  Acarinhei seu dorso, e mais uma vez. Olhou-me indeciso, circunspecto. Roçaram-me mãos delicadas e frias, tão brancas que fiquei em dúvida se eram mãos deveras ou apenas respingos de flocos de neve expulsos das folhagens do pinheiro. O gato desapareceu. Havia a meu lado um copo de cicuta e um charuto. (Não me ocorreu quem os teria posto ali).
Morte era mais encantadora do que espelhos e ficções poderiam supor ou refletir. Fitei-a e a percorri com o olhar como se fosse páginas de custosa percepção. O gosto de cicuta fervilhava em minha boca e toda a minha estrutura óssea estremecia; poros suados, apesar do frio. Ela sorriu e me estendeu a mão.
Amanheceu na cidade de Hoboken.  E nunca mais contemplei olhos iguais àqueles.