"A arte existe para que a realidade não nos destrua." Friedrich Nietzsche



terça-feira, 25 de janeiro de 2011

Dos cansaços


Nesses dias em que se morre a golpes de porquês, ou quase se morre. De caminhadas cinzas que nos oferecem rostos inexpressivos e manchados de tempo, escondidos sob verdades tímidas e espessos casacos surrados e de cores indecisas, encarquilhados por vapores de tempo frio. Ou quem sabe é fim de tarde.
São nesses climas que um gim barato existe para que o real não nos destrua, se é que ele existe de fato. (Sempre achei que o real só existisse na ficção, e a ficção apenas nela mesma). As calçadas de uma avenida qualquer estão repletas de garrafas quebradas e copos vazios, num percurso discreto que dá ao pé da escada de uma talvez boate, também qualquer. Entrementes, não me senti alheio de todo a elas. Deveriam ter histórias para contar que seriam de fato interessantes se houvesse um banco esquecido de outono em um parque desabitado ou quem sabe em um campo de baseball, acompanhado de um bom chocolate quente e um lucky strike. Mas estávamos no inverno, e os bancos de inverno só servem para abrigar neve; quiçá folhas molhadas e secas. Talvez não seja tão triste vagar solitário quando se tem uma imaginação a mais e uma boa carta na manga.
A noite caiu como um trovão sobre a cidade que mais parecia um cemitério de deuses olímpicos.  Ar polido e fúnebre.  Ao largo, um olival era de um cinza esverdeado em meio a arquitetura bucólica formada por respingos cristalizados e tremeluzentes que se desprendiam de nuvens pesadas e negras. Cenário mais que convidativo. Recostei-me a um velho pinheiro sem perspectiva.  Pálpebras dormentes...
- Um gato preto aproximou-se de mim com olhos nunca vistos iguais. Pareciam astros luminosos jamais descobertos.  Acarinhei seu dorso, e mais uma vez. Olhou-me indeciso, circunspecto. Roçaram-me mãos delicadas e frias, tão brancas que fiquei em dúvida se eram mãos deveras ou apenas respingos de flocos de neve expulsos das folhagens do pinheiro. O gato desapareceu. Havia a meu lado um copo de cicuta e um charuto. (Não me ocorreu quem os teria posto ali).
Morte era mais encantadora do que espelhos e ficções poderiam supor ou refletir. Fitei-a e a percorri com o olhar como se fosse páginas de custosa percepção. O gosto de cicuta fervilhava em minha boca e toda a minha estrutura óssea estremecia; poros suados, apesar do frio. Ela sorriu e me estendeu a mão.
Amanheceu na cidade de Hoboken.  E nunca mais contemplei olhos iguais àqueles.

4 comentários:

Júnior Matos disse...

Uhfaaa... rsrs
Demorou,mas voltou. Saudades...
"poros suados,apesar do frio. Ela sorriu e me estendeu a mão...E nunca mais contemplei olhos iguais àqueles"
Amo quando vc escreve!

Maria disse...

Pois é Junior tbm acho rss mas que ninguém se engane só se consegue simplicidade com muito trabalho...já diz Clarice rss adorei Karol parabéns

Ana SSK disse...

Estarrecedor escrito.
Belo na mesma medida.

Anônimo disse...

Karol! encantadíssima com seus textos.. você escreve magia!


Parabéns!
Ps.: orgulhosa, pq eu posso dizer, eu estudei com ela' haha bjo.