"A arte existe para que a realidade não nos destrua." Friedrich Nietzsche



quinta-feira, 4 de novembro de 2010

Fotografar lembranças


Fumaças escorregadias. Um cheiro de medo e de sangue encharcou o ambiente de pânicos e de ausências. Lembranças pálidas ecoando pela sala. Um gosto de feridas abertas instaurava-se nas paredes quebradas. Barulhos espessos vertiam pelas escadas. O ar crescia para fora, abafando os cômodos estreitos. Móveis amedrontados caíam, espatifando-se ao chão como utopias mal sonhadas. Velas abertas. Ouviam-se os passos de vozes mórbidas e frias. As ventanias chocavam-se empurrando muros e pedras para um trecho de lugar que se apagava. A inquietude das fumaças acordava a cólera dos mortos, que ressonavam como se ainda estivessem ali. Pedaços de cicatrizes abriam brechas nos assoalhos, fragmentos de sílabas queimadas roíam o teto curvo. Gritos, espasmos, silêncio. Aproximo-me daquele dia como uma fruta que amadurece entre folhas e raízes apodrecidas no coração da terra, que sustentam seus magníficos troncos, como veias. Rachaduras secas de vento enrugam a atmosfera sufocada entre gritos e fendas.  O teto manchado por lembranças ressequidas infectam o lugar cansado. Dias nervosos que se assombram com as pancadas na madeira, como um concerto de almas, que ao perceberem-se veladas, precipitam-se parede adentro. O branco pálido das criaturas visíveis daquele espaço tece distintos mantras por todas as partes, inclusive na extremidade em que me encontro, aturdida pelo balanço hipnótico de um ponteiro retardante. O olhar desbotado dos rostos nas fotografias observa o ambiente, desatando profundos solilóquios. O semblante áspero da pintura dos móveis evapora-se como o pó e difundem-se pela casa como versos e asas. As aves noturnas inquietam-se no céu como um baile de máscaras. Abaixo, um discurso de outono revoa como aves em meio ao nada, e no verde murcho das folhagens enegrecidas, uma borboleta sonâmbula repousa, observando o sorriso vazio da casa moribunda. Um ritual de estrelas desforra o colchão das nuvens, que esfria com a umidade dos ventos assombrosos e gélidos, e o céu febril derrete-se, entre vertigens e águas.

3 comentários:

Mário disse...

"Aproximo-me daquele dia como uma fruta que amadurece entre folhas e raízes apodrecidas no coração da terra".

Palavras "frias" e belas, como você.

Júnior Matos disse...

Tal como aves em meio ao nada, assim é construída a literatura!!!

Mergulhado em suas palavras sinto frio por estar exposto ao sol, e vejo o sorriso dos seres mais tristes!!

Lê vc é para minha mente tal como ar para meus pumões!!

Te adorooo.

Rhalyne disse...

"E o que vai ficar na fotografia são os laços invisíveis que havia..."

Texto perfeito.
Ler-te me faz um bem danado.
ai lovi iou. haha