"A arte existe para que a realidade não nos destrua." Friedrich Nietzsche



segunda-feira, 22 de novembro de 2010

Quando o silêncio deixa de respirar


                                                                    para Maria Silva, minha amiga e fiel leitora.

Dias de reflexos de asas
de rios e harpas
de  folhas de relva, e de silêncio.

Pássaros dormentes neblinam o dia
como respingos de constelações
que se acendem e apagam
como velas nervosas.

Sussurros de árvores pálidas e secas
saem valsando pelos ventos 
e pelas folhagens onde
as palavras gorjeiam.

Um respirar de flores mudas
enfeitam janelas de dias acordados
objetos ausentes recebem
reflexos de longos azuis
esquecidos à margem dos dias.

Lírios crispados sorriem
de lembranças belas e gastas
e o bailar das presenças
achega-se com tons de infância
escrevendo estrelas.

Inverno


Na superfície fria, algodões de ar
densas nuvens de frontes roídas
racham as paredes do céu
e recolhem-se pesadas e indecisas
como um quadro de Pollock

No chão, precipícios de águas
Seixos abertos, como pernas
Copular de gotas 

sábado, 20 de novembro de 2010

Divagações noturnas



Hálitos nervosos dispersam-se na atmosfera seca
pálpebras ressequidas no sal dos prantos,
soluços confundem pássaros, como voos
como gritos
rachados pela fúria acesa do sangue
nas cinzas
restos fétidos oscilam entre faróis e nervos
lembranças largadas pelo chão quebrado
como soluços de cicatrizes e de infância
às moscas
aos vermes
satisfeitos, erguem a taça
ao banquete, e celebram
luzes assombram a estrada deserta
entranhas enfronhadas nas ferragens
dissipadas como folhas de outono
fragmentos de respiração ecoam
ressecos
como o tédio,
como a pele exposta ao sol indeciso
feridas abertas roem a
arquitetura das almas
manchadas de estradas paralíticas
sem rostos e sem  veias
sonâmbulas vagueiam
ao ocaso das horas.

sábado, 13 de novembro de 2010

Ausência em mármore



Ausências sonâmbulas
madrigais que se acendem
como carícias de mar.

Respirações amarfinadas
submersas em lago marmóreo
como superfícies gélidas.

Semblantes ausentes
como aurora interrompida
pelas venezianas da janela.

Segredos em sangue
como corpos estendidos,
como sílabas de fogo.

Pássaros disformes, teu olhar
como presenças quebradas,
como algo que se acende
E apaga.

quinta-feira, 4 de novembro de 2010

Fotografar lembranças


Fumaças escorregadias. Um cheiro de medo e de sangue encharcou o ambiente de pânicos e de ausências. Lembranças pálidas ecoando pela sala. Um gosto de feridas abertas instaurava-se nas paredes quebradas. Barulhos espessos vertiam pelas escadas. O ar crescia para fora, abafando os cômodos estreitos. Móveis amedrontados caíam, espatifando-se ao chão como utopias mal sonhadas. Velas abertas. Ouviam-se os passos de vozes mórbidas e frias. As ventanias chocavam-se empurrando muros e pedras para um trecho de lugar que se apagava. A inquietude das fumaças acordava a cólera dos mortos, que ressonavam como se ainda estivessem ali. Pedaços de cicatrizes abriam brechas nos assoalhos, fragmentos de sílabas queimadas roíam o teto curvo. Gritos, espasmos, silêncio. Aproximo-me daquele dia como uma fruta que amadurece entre folhas e raízes apodrecidas no coração da terra, que sustentam seus magníficos troncos, como veias. Rachaduras secas de vento enrugam a atmosfera sufocada entre gritos e fendas.  O teto manchado por lembranças ressequidas infectam o lugar cansado. Dias nervosos que se assombram com as pancadas na madeira, como um concerto de almas, que ao perceberem-se veladas, precipitam-se parede adentro. O branco pálido das criaturas visíveis daquele espaço tece distintos mantras por todas as partes, inclusive na extremidade em que me encontro, aturdida pelo balanço hipnótico de um ponteiro retardante. O olhar desbotado dos rostos nas fotografias observa o ambiente, desatando profundos solilóquios. O semblante áspero da pintura dos móveis evapora-se como o pó e difundem-se pela casa como versos e asas. As aves noturnas inquietam-se no céu como um baile de máscaras. Abaixo, um discurso de outono revoa como aves em meio ao nada, e no verde murcho das folhagens enegrecidas, uma borboleta sonâmbula repousa, observando o sorriso vazio da casa moribunda. Um ritual de estrelas desforra o colchão das nuvens, que esfria com a umidade dos ventos assombrosos e gélidos, e o céu febril derrete-se, entre vertigens e águas.

quarta-feira, 3 de novembro de 2010

O destino de uma folha


Qual o sublime que a espreitara? Pudera eu ter perguntado? Sentira seu esforço por me dizer. Estava eu ali, consolando-a no seu mais íntimo desespero, o qual a própria me confiara. A fronte seca e vertiginosa me sorri. Sorriso expressivo, compassado, como se quisesse se comunicar. Os olhos eram de uma cumplicidade romanesca. Haveria me dito profundos desvarios, ou talvez não houvesse me dito nada.  Como saber? Olhos agarrados a mim como uma prece, como um grito dado ao largo, enfurecido e trêmulo, indubitavelmente trêmulo, e de maneira tão cruel que chegara a roçar em mim simpatia e dó. O ar em movimento a carregava de um lado a outro dando gritinhos imprecisos, como que brincasse. Contudo, achava-se alheia àquelas investidas pueris. Desbotada pelas tintas do sol, queimada pela excelência mesquinha do fogo. Rija. A folha mais guerreira com a qual me deparara. Firme como uma pedra. Que caminho a haveria empurrado àquela situação? O vento a brincar a arrebatara a um rancho de pedras-moles, e na condição de velha e cansada, já não a animara esforço de recomeço. Deixara-se ficar. Quantos ensinamentos aquela velha folha me trouxera. Mas já era de tudo tão tarde, e de tal forma que cheguei a sentir o gosto do fim em minha boca. Lá, inerte, resignada, forte. Com a ajuda de um punhado de vento seco, erguera os bracinhos, finos como gravetos, como que um convite a um abraço. Tentara discorrer algo num esforço inútil. Meus olhos começara a suar do lado de dentro. Porque haveria eu de chorar por ela? Qual seria o motivo significante daquele encontro? Aquilo que nunca se descobre, mesmo que se pergunte, mesmo que caia. O peso da chuva sob a fragilidade de seu corpo o fragmenta, e evapora pelo ar, como algo inacabado, impreciso, como um sonâmbulo a vagar pela vida na esperança de que uma madrugada cinzenta venha abrir os seus olhos. E recua. E descansa. Como o sândalo em cinzas, como uma folha partida ao meio.